Em "Canção Simples"[i],
poema que faz parte do livro Canção da
Partida, une-se a questão sócio-econômica e a condição da mulher
enquanto sujeito socialmente marginalizado.
A
flor caída no rio
que a leva para onde quer
sabia disso e caiu,
seu destino é ser mulher.
Mulher que tudo já deu
homem que tudo tomou,
é mulher que se perdeu,
é homem que conquistou.
A
autora nos mostra como a sociedade atribui valores desiguais à mulher . Para o
homem os semas revelam atitudes ativas: "tomou/conquistou"; para a
mulher semas que que trazem sxentidos de passividade "deu/perdeu".
Como se fosse uma denúncia a essa sociedade patriarcal na qual ela viveu, a
autora nos faz refletir que a difusão de tais atitudes envolvendo valores da
norma contribui para reiterar o simbolismo sobre o feminino, constituindo-se
desta forma em violência a usurpação de seus direitos.
No poema "Chiquinha"[ii],
do mesmo livro, a autora traz à tona o tema da sujeição histórica da mulher,
provocando uma reflexão não só no que diz respeito a escravização do corpo
feminino ocorrida no passado, mas a época em que a mulher começa a sair da
esfera doméstica para inserir-se no mercado de trabalho, ainda que, como mão-de-obra
barata. Ao mesmo tempo em que a autora, conscientemente reconstitui a situação
de objeto da mulher, não só como escrava, mas também e simplesmente como
mulher, quando se refere a sua vida nos haréns ou nos castelos medievais. O
poema, através do resgate da história, mostra a violência simbólica que a
mulher vem sofrendo/ sofreu:
Chiquinha
Chiquinha
tão
frágil,
magrinha.
Teu
corpo miúdo,
O
tempo secou,
As
formas redondas,
o
tempo gastou.”
[...]
Teu
corpo cansado
lutou
no Egito
as
mãos, mãos escravas,
abanaram
leques
e
teu corpo nu,
teus
seios morenos
e
teus pés pequenos
dançaram
lascivos,
ligeiros,
airosos,
deleitando
o tédio
de
reis ociosos.
Chiquinha,
teu
corpo cansado,
foi
corpo explorado
na
Mesopotâmia,
na
Pérsia e Turquia
-
haréns de sultão –
foi
pária na Índia,
na
China e Japão.
Teu
corpo explorado
foi
mercadoria,
espada
e cavalo
e
vinho, foi orgia
na
Arábia lendária,
de
ardência e magia.
[...]
Chiquinha
Chiquinha
durante
dez séculos,
teu
corpo fechado
nas
torres feudais
de
imensos castelos
foi
corpo arrancado
da
terra, da vida,
corpo
sem raiz,
feito
puro de espirito,
mistério
e tabu,
teu
corpo adorado
foi
corpo explorado.
A temática da liberdade
vigiada e da construção da identidade feminina é reforçada em "Canção
da partida"[iii], poema que recebe o mesmo
título do livro. A mulher, o pobre e o negro são "gente marcada".
Nessa passagem, a escritora através da personagem denúncia que além de ser
mulher, é negra e pobre, motivos do seu alijamento social por uma sociaedade
burguesa e preconceituosa:
Bernadete é preta
é preta que nem tição.
Bernadete é pobre,
é pobre sem um tostão.
[...]
- Pelo sinal da pobreza!
- Pelo sinal de mulher!
- Pelo sinal!
da nossa cor!
Nós somos gente marcada
- ferro em brasa em boi zebu –
ninguém precisa dizer:
Bernadete, quem és tu?
[i] Canção da Partida, 121, 1a. ed.
[ii] Canção da Partida, 63, 2a. ed.
[iii] Canção da Partida, 29, 2a. ed.